O grito da Amazônia

Íntegra - O grito da Amazônia

A Igreja Católica na Amazônia Legal se reuniu de 28 a 31 de outubro de 2013 em Manaus (AM) para discutir sua ação na região e renovou seu compromisso com o povo

Vozes de profetismo, denúncia, fé e esperança ecoaram no I Encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal. Promovido pela Comissão Episcopal para a Amazônia (CEA), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o encontro reuniu 160 participantes dos nove estados da Amazônia Legal: Tocantins, Maranhão, Mato Grosso, Rondônia, Acre, Amazonas, Pará, Roraima e Amapá.

Além dos impactos das hidrelétricas, o encontro discorreu sobre temas que afligem os povos ribeirinhos, extrativistas, quilombolas e indígenas: a luta pela terra. Tratou, também, do tráfico humano, já que estradas, rios e aeroportos da região são as principais rotas para o tráfico internacional; além do desafio da Pastoral Urbana.

As lideranças estudaram e rezaram a Amazônia, o que resultou na renovação do compromisso em ser uma Igreja “encarnada na realidade, pelo conhecimento e pela convivência na simplicidade, e uma evangelização libertadora”, diretrizes assumidas no I Encontro da Igreja na Amazônia, em Santarém (PA), 1972.

“A Igreja quer dar voz e estar junto com vocês para reivindicar o direito de ter voz, de falar e de não ser atropelado simplesmente por quem quer ganhar dinheiro”, afirmou o cardeal dom Cláudio Hummes, presidente da CEA, referindo-se aos projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para a Amazônia.

Arquivo

Amazônia, região continental − A Amazônia Legal corresponde a cerca de 60% do território nacional. Nela reside 56% da população indígena brasileira. Segundo a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), são aproximadamente 21 milhões de habitantes, 12,4% da população nacional.

De acordo com a Sudam, de 1970 a 2000, a população da região saltou de 35,7% para 68,2%. Os números refletem a política de desenvolvimento da região, a qual apostou em grandes empreendimentos extrativistas, resultando em impactos ambientais irreversíveis à fauna, flora e populações locais.

“Estamos sofrendo uma situação caótica em termos de educação, saúde, trânsito, segurança pública e depois uma carestia nunca vista. A prostituição está em toda parte. É tudo clandestino”, denuncia dom Erwin Kräutler, bispo da Prelazia do Xingu (PA), sobre a situação do município de Altamira (PA), impactado pela construção da Usina de Belo Monte. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que a população urbana da cidade cresceu 26% nos últimos dez anos.

“Não poderiam os bispos da Amazônia terem escolhido o momento mais propício para se reunirem. Há um novo desafio pela frente. Está prevista para os próximos 20 anos a construção de 40 hidrelétricas na Amazônia. Destas, 40% atingem povos indígenas e 100%, as populações tradicionais, quilombolas, colhedores de açaí, seringueiros”, afirma o procurador da República junto ao Ministério Público Federal do Pará, Felício Pontes Jr. Segundo o Movimento Viva Xingu serão removidas entre 16 mil e 25 mil pessoas só na Belo Monte.

Em Rondônia, os impactos das usinas de Jirau e Santo Antonio realocaram 7 mil pessoas. “Depois que começaram a abrir as turbinas e as comportas a água desbarrancou as beiras do rio, umas 300 famílias tiveram que ser desalojadas e restaurantes foram fechados, isso não estava previsto. Com o deslocamento das famílias, vimos aumentar o número de conflitos de terras, que hoje chega a 70, no estado. Entre 2012 e 2013, dez lideranças foram assassinadas”, disse Josep Ibora Plans (Zezinho) da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Rondônia.

Arquivo

À luz da fé, a sustentabilidade − Iniciativas apontam resultados positivos a partir de projetos criados e geridos pelos povos da Amazônia. Padre Luis Ceppi, assessor das pastorais sociais nos estados de Rondônia, Acre e sul do Amazonas, destaca o Projeto de Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado (Reca), na Vila Nova Califórnia (RO), uma Associação dos Pequenos Agrossilvicultores, que cultivam frutas nativas em conjunto com culturas agrícolas e a criação de animais.
“A proposta nasce à luz das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), nos grupos de reflexão a partir da Palavra de Deus. Frente ao desmatamento das florestas, a preocupação com a biodiversidade e formas de sobrevivência, a comunidade uniu os saberes do povo tradicional da região e dos migrantes do sul do Brasil e criou uma organização social, produtiva e de base familiar comunitária”, conta padre Ceppi. O Reca possui 11 grupos de produtores organizados na área rural, cada grupo possui um líder e um coordenador para representar o Reca em seu dia a dia e nas discussões de trabalhos.
No Acre, há cooperativas que favorecem as famílias extrativistas do Alto Acre, Baixo Acre e Purus, na organização, representação e garantia da sustentabilidade extrativista, agregando valor aos produtos, no resgate da credibilidade, da dignidade e da educação, na promoção da igualdade social, econômica e respeito ambiental.

Arquivo

A voz do povo pela Terra − Os conflitos de terra espalham-se pelo País, são motivados por disputa com o agronegócio. Estudo do Greenpeace aponta que 79,5% das áreas utilizadas na Amazônia Legal (excetuando-se o Maranhão) estão ocupadas por pastagens, em 2003 havia 64 milhões de cabeças de gado na região.

Os dados refletem-se na lista da CPT, na qual constam 116 nomes de pessoas ameaçadas de morte, por disputa de terra entre fazendeiros e povos indígenas, extrativistas e/ou quilombolas.
Lideranças como irmã Dorothy Stang e o casal de extrativistas José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, assassinados, continuam a sofrer ameaças. Catarino dos Santos Costa, de Pinheiro (MA), é descendente de pessoas que foram escravizadas e luta para que 536 famílias, 5.834 pessoas permaneçam no Quilombo Cruzeiro, em Palmeirândia (MA), conforme Decreto 4.887, que assegura os direitos territoriais dos quilombos.

“Luto pela terra e posso morrer por ela, não há vitória sem luta. Os capangas do posseiro já vieram me dizer ‘sai disso aí, senão qualquer hora você vai estar com a boca cheia de formiga’, mas isso não me intimida”, afirma Catarino, que aguarda a delimitação da terra, onde resiste no acampamento. No Maranhão, 334 terras quilombolas buscam identificação e delimitação de território.

A terra indígena também foi tema no encontro. “Juntos, povos indígenas e CNBB, representado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), conquistamos a Raposa Serra do Sol, nossa terra. Queria uma nova caminhada, uma nova saída para resolver os problemas dos nossos povos pelo País, estaremos unidos para vencer as dificuldades”, disse Jacir José de Souza, liderança indígena da terra demarcada Raposa Serra do Sol.

Os “problemas” a que se refere Jacir partem de Brasília (DF), onde tramita uma Proposta de Emenda à Constituição, a PEC 215, que quer transferir a competência da demarcação de terras da União para o Congresso Nacional.

“Eu até me envergonho que tenhamos gente no Congresso que proponha uma coisa dessas, porque conspurca a imagem do Brasil, que é signatário de tantas convenções e não pode passar por cima disso. A bancada ruralista só tem interesses e quer se expandir à custa da vida e sobrevivência de povos inteiros. Nós vamos cobrar aquilo que o Brasil é: signatário”, afirmou dom Erwin Kräutler, também presidente do Cimi.

Arquivo

Uma Igreja missionária – É pelo Rio Japurá que padre José Cândido Cocaveli chega às 25 comunidades da Prelazia de Tefé (AM). Enviado há 15 anos pela Diocese de São José do Rio Preto (SP), como missionário leigo, descobriu sua vocação sacerdotal em meio à missão.

“Os pobres aqui na fronteira são esquecidos, ignorados e não contados, não têm acesso digno à saúde, à educação de qualidade”, revelou o padre, que procura compor os Conselhos Municipais do Direito da Criança e o da Saúde, para cobrar atuação mais firme do governo local.

Há comunidades em que Cocaveli visita apenas duas vezes por ano, dadas as longas distâncias, e ali, o papel do leigo é decisivo para a existência da comunidade. “O protagonismo laical não se dá na disputa entre ministério ordenado e não ordenado. Em tempo de rever o Concílio Vaticano II, a gente tem de recuperar uma coisa: o Concílio fez uma inversão nessa estrutura da Igreja, nós somos Povo de Deus, eu como padre faço parte do povo sacerdotal pelo Batismo”, lembra padre Cocaveli.

Há dois anos na Prelazia de Tefé, a assistente social, ex-prefeita de Campinas (SP), leiga missionária, Izalene Tiene, atua em Tabatinga (AM), divisa entre Colômbia, Peru e Brasil, dedicando-se às juventudes, educação ambiental e formação de lideranças. “Em 2014, com a Campanha da Fraternidade (CF), combateremos o tráfico humano, problema muito sério na região amazônica.”

Arquivo

Vidas pela vida − “Algumas pessoas me diziam: ‘Não apoie as investigações contra o tráfico de pessoas, o senhor não conhece o poder mortífero, o ódio e a organização que eles têm. Eles vão matá-lo’. Mas eu devia fazer uma opção e a fiz. São ovelhas do rebanho que Cristo me confiou, não posso dar as costas. E assim foi”, conta dom José Luís Azcona Hermoso, bispo da prelazia do Marajó (PA).

Em sua atuação pastoral, dom Azcona vem denunciando a devastação ambiental e a pesca predatória na região, além da prostituição infantil e o tráfico de mulheres da Prelazia para a Guiana Francesa e para a Europa. Por esse engajamento, é ameaçado de morte. Segundo irmã Henriqueta Cavalcante, membro do Comitê Estadual de Combate ao Tráfico no Pará, o tráfico humano tornou-se uma verdadeira indústria poderosa.

“Nós aqui na Amazônia vivemos em área de fronteira, e isso facilita o tráfico. Não há controle nem fiscalização. A fragilidade é enorme, passo 15, 20 horas dentro de barcos e vejo a movimentação de crianças que circulam sozinhas. Já constatei o movimento de crianças envolvidas com os próprios funcionários das embarcações”, denuncia a religiosa. Dados das Nações Unidas revelam que o tráfico de pessoas movimenta anualmente 32 bilhões de dólares em todo o mundo. Desse valor, 85% provêm da exploração sexual.

Dom Azcona ressalta que o papel da Igreja, sobretudo com a CF 2014, é o de conscientizar as vítimas e toda a população. “A atuação da Igreja ajuda a intimidar esses poderosos chefões do tráfico”, enfatiza.
“Já perdi o medo! E vocês não tenham medo de começar a defender, neste Brasil de corrupção, a justiça e a verdade. Vocês vão correr perigo de morte e serão perseguidos, mas a justiça e a verdade precisam ser defendidas”, convoca dom Azcona.

Em trecho da carta conclusiva do I Encontro da Igreja da Amazônia Legal, os participantes mostram-se confiantes da presença de Jesus Cristo na ação pastoral e evangelizadora na região e convidam os que não professam a fé católica a se unirem na defesa da dignidade e dos direitos humanos dos povos da Amazônia.

* Essa reportagem é um projeto pioneiro. Promovido pela Signis Brasil e concretizou-se numa parceria com 16 impressos católicos na adesão à proposta de produção e publicação de conteúdo compartilhado.

Protagonismo amazônico

O olhar sereno, firme e confiante dá visibilidade aos que são explorados. Há a possibilidade real de a vida lhe ser tirada. Ela assumiu decididamente o compromisso em combater a exploração sexual e o tráfico humano, esta é irmã Henriqueta Cavalcante, 53 anos, da Comissão Justiça e Paz, da CNBB, no Pará e Roraima. Por sua atuação, sofre ameaças de morte.

Atuando incansavelmente em prol dos atingidos por Belo Monte. O procurador do Ministério Público Federal, Felício Pontes Jr., 47 anos, afirma que, por vezes, se vê numa sensação de derrota e fracasso, mas convicto parafraseia Darcy Ribeiro: “Detestaria estar no lugar de seus vencedores”.

Deixou Campinas (SP) e partiu em missão para Tabatinga (AM). A viagem fluvial, saindo de Manaus (AM), dura cerca de três dias na ida e de retorno, sete. Na cidade da selva amazônica, a missionária leiga dedica especial atenção às juventudes, educação ambiental e formação de lideranças, essa é Izalene Tiene, 70 anos, que foi enviada pelo Projeto Igrejas Irmãs, entre os estados de São Paulo e do Amazonas.

Ele assume com postura profética e combativa, unindo fé e vida, a luta dos povos indígenas, ribeirinhos e extrativistas, essa é a postura do bispo da Prelazia do Xingu (PA), dom Erwin Kräutler, 74 anos.

Pele negra, calejada pela história, olhar firme no horizonte e nas linhas da lei que asseguram a si e ao seu povo a terra de seus antepassados. Marcado para morrer, Catarino dos Santos, 35 anos, filho e defensor do Quilombo Cruzeiro (MA), defende o direito à terra dos quilombolas.