Dom João Inácio Müller

Deus nos ama tanto que quer nos comunicar tudo de si

O mês de outubro é o mês das missões! Mês que somos convidados a refletir sobre o nosso papel como Igreja e assumir a missão de anunciadores da Boa Nova com mais empenho. Nossa maior missão, como batizados, é evangelizar! Que possamos atender ao chamado que o Senhor faz a cada um de nós levando a fé e a esperança com nossas palavras e ações a nossos irmãos.

Confira na íntegra a entrevista que o Bispo da Diocese de Lorena (SP), Dom João Müller, frade franciscano, concedeu à Revista Canção Nova sobre este chamado:

Arquivo CN

Revista CN – Mês de outubro, mês das missões, estimulado ainda mais pelo Papa Francisco, por toda sua postura missionária, e pelo Documento de Aparecida, o que é ser missionário?

Dom João – Este mês de outubro é o mês missionário porque a Igreja resolveu dar destaque aos Padroeiros das Missões, em particular, a Santa Teresinha do Menino Jesus, que morreu cedo, com 23 anos. Uma carmelita que entendeu que deveria se consagrar, por inspiração de Deus, à contemplação. E na contemplação, levou uma vida de amor profundo e intercessão por todos os missionários espalhados pelo mundo. As missões, nós podemos falar em missões, porque Deus se revelou missionário. Deus é o primeiro grande missionário. Hoje admiramos muito nosso Papa Francisco. João Paulo II começou esse “ir pelo mundo”, Paulo VI teve algumas rápidas atividades missionárias, Bento XVI também teve seu empenho nesse sentido e, hoje, o nosso Papa Francisco anda por regiões inusitadas e de grandes conflitos. Mas quem primeiro fez a grande saída e fez de si algo diferente por causa do amor, do bem querer e por causa da mensagem que tinha de levar, foi nosso Deus. Nosso Deus, desde a criação, acompanhou o ser humano e, de maneira muito particular, em Jesus, pois Cristo foi enviado pelo Pai para nós. Por quê? Por causa do amor. Deus nos ama tanto que quer nos comunicar tudo de si e nos falar.

A Campanha da Fraternidade deste ano foi sobre o tráfico humano. Podemos ligar isso ao tema missionário no sentido de procurarmos ver o empenho nosso como cristãos a partir do Evangelho e da missão de Jesus na libertação do ser humano. Então o primeiro ponto que fica é a própria acolhida da presença de Deus em Cristo, do jeito que Ele se revelou a nós: um grande ato de libertação. Quando o ser humano acolhe o amor de Deus ele se sente livre em si, acolhido e pleno. Eu diria que, quando o ser humano se encontra na sua identidade profunda, sempre se encontra como filho de Deus, amado, amante e livre.

A primeira grande experiência, que é necessária para que o ser humano seja um instrumento de libertação, é poder ser alguém livre. Jesus foi extremamente livre, infinita e incondicionalmente livre. E amado pelo Pai, no amor do Pai, nos amou plenamente, porque Ele é um com o Pai. Ele se empenhou para que, por intermédio do corpo, das obras e da fala d’Ele, o grande desejo do Pai de amor chegasse a todas pessoas. Eu creio que, a partir disso, se entende a nossa grande missão evangelizadora – libertadora com toda a Igreja, com grandes figuras como nossos últimos Papas e o Papa atual – de sermos instrumentos para a restauração da dignidade do ser humano.

Neste ano, temos refletido sobre o trabalho escravo, o tráfico de pessoas e de órgãos humanos, a prostituição e assim por diante. Nós somos chamados pela Igreja, em nome do Cristo – a Igreja sempre está a serviço de Cristo – a ser instrumentos de restauração do ser humano por intermédio de nossas obras sociais e do nosso empenho comunitário, para que possamos levar aquela vida desejada por Deus para todos os seres humanos e, em particular, àqueles que são mais escravizados por essas situações.

Revista CN – O fiel já está executando bem o contexto “discípulo missionário” ou ainda separa um do outro?

Dom João – Não tem como os separar, pois, para ser missionária, a pessoa tem que ser discípula e a pessoa que é discípula, necessariamente, é missionária. Não tem como ser só discípula e não tem como ser só missionária. O missionário deve ser discípulo, pois o discípulo vem antes do missionário. E para seguir você tem que colocar os olhos no Senhor, você deve mergulhar na sua profundidade, você tem que entrar em sintonia com a interioridade do Nosso Senhor e ali encontrar o Deus Trindade: todo o amor revelado por Deus na pessoa do Cristo e animado pelo Espírito Santo. Desse modo você se deixa embalar por este jeito de viver, vai se sentir encantado e se empenhar para fazer tudo o que for necessário para ser um instrumento, como Jesus o foi, às pessoas. Um instrumento para levar a Boa Nova e fazer as obras necessárias, as atitudes necessárias, em benefício dos outros, para que todos tenham a vida desejada por Deus.

Por essa razão, não tem como separar o ser discípulo do ser missionário; e o nosso Papa hoje, como que corrigindo o Documento de Aparecida, ligou as duas palavras tirando a conjugação “e”: “discípulo missionário”, porque as duas se completam, uma chama à outra!

Revista CN – Ainda há muitos cristãos que entendem missionário só como aquele que vai para África ou que vai trabalhar com os índios?

Dom João – Sim, a essa missão chamamos de missão “ad gentes”, missão em direção a alguém, a outros povos, se bem que hoje nós entendemos missão “ad gentes” como uma missão também aqui do Brasil. Como alguém de nós, aqui da nossa Diocese de Lorena(SP), por exemplo, ir para a região amazônica, onde temos povos que ainda não ouviram a Palavra de Deus. Conheço a região de Iquitos, região de Requena, conhecida como Amazônia peruana, na qual existem algumas missões e podemos chamá-las de missões “ad gentes” por isso.

A Igreja incentiva e promove encontros para missionários que se dispõem a ir a outros povos, com outras culturas. No Brasil, temos hoje mais missões em Angola, Moçambique, no Timor Leste, exatamente por causa da língua portuguesa. Temos uma grande presença missionária no Haiti, depois do grande terremoto (de 2010, quando morreram 240 mil pessoas neste país). Eu diria que a Igreja é carente ainda desta missão que é direcionada a outros povos, aos quais a Palavra de Deus está começando a ser anunciada ou onde a Igreja ainda não tem uma estrutura, onde a Igreja não tem forças para caminhar com suas próprias pernas, com as próprias forças, porque não tem vocações autóctones, isto é, que nasceram ali.

Isso é algo próprio da Igreja, pois desde o início ela foi assim por intermédio do apóstolo Pedro e também de Paulo. Pedro foi ao encontro dos pagãos e depois Paulo fez o mesmo. O apóstolo dos gentios foi o grande missionário que caminhou ao encontro dos gregos e foi até Roma, onde foi decapitado. Pedro também chegou até Roma. Esses apóstolos são grandes luminares de que a Igreja nasceu indo ao encontro dos povos e, talvez indo mais à fonte, o próprio Cristo que saiu do território da Palestina, de Israel, quando foi ao encontro da Síria ou da Fenícia e encontrou aquela mulher que suplicou para Ele interceder pela filha. Jesus falou: “Eu vim mais por meus filhos” e ela: “os cachorrinhos também comem das migalhinhas que caem”. Percebemos que o Cristo ultrapassou as fronteiras da própria terra para levar a Palavra de Deus. A Igreja conclama e reza para que mais pessoas, jovens, pessoas consagradas, leigas, possam se dispor a ir ao encontro dos nossos irmãos e irmãs que ainda não conhecem a Palavra de Deus ou, se a conhecem, conhecem muito pouco.

Revista CN – Também existe a missão mais próxima que pode ser vivida pelas pessoas no dia a dia? O senhor citou lugares distantes, mas mesmo aqui na Diocese de Lorena (SP), que não é tão grande, existem alguns lugares com dificuldade até de acesso e que precisam também de uma missão.

Dom João – Sim, a nossa diocese é necessitada de missões e eu estou muito preocupado com isso. Eu gosto de usar as expressões do Papa com os meus padres e com os nossos leigos, eu lhes digo assim: “A Igreja nasceu de saída, pois Deus saiu de si para vir ao nosso encontro”. Temos nas nossas 14 cidades, mais especificamente nas periferias, muitas famílias e bairros que ainda não conhecem, eu diria, o rosto do padre ou dos catequistas, pois ainda temos dificuldades de visitar todo o mundo.

Além disso, como muito bem você citou, nós temos nossas roças, regiões mais distantes, os interiores; mesmo nas periferias de Lorena, na região do Vale Histórico, há regiões com acesso dificultado. Há padres que pegam de duas a três conduções para chegar a esses locais. Vão com o carro da paróquia, depois pegam um Jipe e, por fim, vão a cavalo para poder chegar a algumas famílias e comunidades. Sei que um padre de Arapeí (SP) fez uma missão em que ele chegou a um lugar muito íngreme e sem acesso a uma senhora de 84 anos, que não havia sido batizada, mas se mantinha cristã pela prática da vida. Ela fazia orações que a avó dela havia ensinado, mas não tinha o batismo. Porém, vivia uma vida evangélica, algo muito bonito. Eu me sinto desafiado, junto com toda a Igreja: nós precisamos nos abrir a tudo isso, nós precisamos sair, sair mais. E não só os padres, mas nós padres e os leigos, pois é nossa missão ir ao encontro das pessoas, das que não ouviram a Palavra de Deus.

Eu, como bispo, me encanto muito com algumas práticas, muitas maneiras de viver e até maneiras de falar do nosso povo, de nossa diocese. A forma como cantam, como rezam, como adoram. O jeito como algumas pessoas vêm receber a Eucaristia. Isso, para mim, é um anúncio, um ser anúncio para o outro por intermédio do seu corpo, pois todo corpo onde habita a presença de Deus transmite isso, pois ele está pleno da presença de Deus. Nossa Senhora, quando foi visitar Isabel, não precisou dizer grandes coisas, pois o fato de estar grávida, habitada pelo Filho do Altíssimo, este se comunicou nela a João Batista e João acordou Isabel mostrando-lhe: “É o teu Senhor que veio te visitar”. Da mesma forma, nós precisamos levar Nosso Senhor com nosso corpo, com nossa união com Cristo a todas as pessoas.

Revista CN – As redes sociais e os meios de comunicação também precisam ser alcançados pelas missões?

Dom João – Eu diria que as redes sociais, em especial as católicas, não têm sentido de existir se não for para evangelizar. Elas precisam evangelizar e perscrutar o coração do ser humano e a cultura na qual ele vive, para que elas possam ter a mensagem certa para as pessoas de hoje. Por exemplo, a finalidade da Canção Nova é formar homens novos para o mundo novo; o que significa estar atualizado e atento ao jeito que o ser humano hoje acolhe a Palavra de Deus.

Entendo que precisamos usar os meios de comunicação. Jesus usou meios de comunicação! Não tinha microfone, mas os milagres que Ele fazia, a forma como Ele caminhava, tudo isso criava impacto. Ele não tinha um jeito uniforme de estar no mundo, entrava em uma casa, sentava-se com pecadores e senhoras que não tinham uma fama boa de vida. Sentava-se com os discípulos e ia passear com eles para lhes revelar algo mais intenso. Subia a montanha para ter uma revelação maior, ajoelhava-se e suava sangue com os discípulos dormindo. Jesus inventou mil maneiras de se comunicar e os meios de comunicação são necessários, são chamados pela Igreja e devem ser veículos privilegiados e especializados em comunicação, porque, com a ajuda desses meios, atingimos muitas pessoas.

Existem muitas pessoas que nos ouvem e nos assistem pela rádio, web e TV, e aprendem a rezar com esses meios de comunicação. Pois cada pessoa, a cada dia, está com uma sensibilidade diferente e nós precisamos nos manter ativos e reverentes à mensagem de Cristo; o Espírito Santo saberá o momento certo em que as pessoas se darão conta disso, que vão se abrir, acolher a mensagem. Precisamos continuar e sempre buscar descobrir maneiras novas de transmitir a Palavra.

Revista CN – Outubro também é o mês do rosário, da festa da Padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida. Dê-nos uma palavra sobre essa devoção mariana.

Dom João – Quem tem devoção a Nossa Senhora nunca vai mal. Maria Santíssima é um “garante” diante de Deus a todos aqueles que se confiam a ela. Por intermédio do santo rosário nós fazemos reverência, demonstramos admiração e carinho por Maria Santíssima. Nós queremos levar esse carinho e essa devoção a Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Nossa Senhora, desde sempre, é a grande intercessora. Desde o início, quando ela falou para Jesus e particularmente para aqueles que estavam ao lado, naquele diálogo nas bodas de Caná: “Fazei tudo que Ele vos disser”, eles obedeceram e o milagre aconteceu. Parece-me, então, que o rosário, rezar a Palavra de Deus, buscar a força em Nossa Senhora e nos confiarmos a ela são exatamente tentativas de obedecermos a Nosso Senhor, pois Nossa Senhora é uma grande intercessora.

Nossa Senhora do Rosário tem muito a ver com a Batalha de Lepanto (Grécia), quando a Igreja, para poder se libertar dos turcos, fez uma grande oração e entendeu que foi graças à intercessão de Nossa Senhora que alcançaram a vitória. Estamos aqui nas proximidades de Aparecida (SP), muitas pessoas visitam este santuário, muitas se agarram à Mãe para poder chegar ao Pai. A Mãezinha do céu, Nossa Senhora Aparecida, grande intercessora, nos faz alcançar as graças do Senhor. Deus Pai quer se servir dela e quer que nós nos sirvamos de Maria Santíssima, nossa Mãe, fazendo uso desse jeito humano que nós temos, fazendo-nos filhos e filhas diante da figura da Mãe.

Rezo a Nossa Senhora para que ela interceda por todos os que nos leem e deixo um conselho que um dia eu ouvi do meu pai: “Quem reza a Nossa Senhora nunca vai mal na vida, pois ela cuida, ela é Mãe”.

Dom João Inácio Müller
Bispo da Diocese de Lorena (SP)